Ela pedalava por ruas tranqüilas. As copas das árvores filtravam os raios de sol do fim da tarde, criando desenhos sinuosos no asfalto. Ao passar pela mercearia, lembrou-se do convite da amiga mais velha – que era ela própria, mas ela ainda não sabia: “Vá à mercearia quando puder, e prove aquele peixe”. Decidiu parar.
Sua amiga mais velha estava lá. E as duas pediram o peixe. Ao ser servido, tudo o que ela viu foi um peixe gordinho e empanado sobre a travessa de alumínio. “Prove-o!” – disse a idosa, com um olhar cúmplice. “Esse peixe é mágico.”
A mais nova obedeceu. À primeira dentada, susto: vivo! O peixe estava vivo! E se debatendo ainda entre as algas verdes.
Num instante, água, água ao redor. Ela sentiu o sal marinho entrando pelos seus poros, por sua boca, seu nariz, encharcando seus cabelos. Ela se assustou e quis gritar. Foi quando seu olhos se abriram. E ela entendeu que a senhora a sua frente, que lhe sorria, calma, não era se não ela própria, no futuro.
Aquietou-se e deixou-se inundar. Virou peixe. E ganhou o mar.
"Ver e ouvir e sentir são milagres, como é milagre cada parte e migalha de mim"
Walt Whitman, Canção de mim mesmo, in Folhas de Relva
Acredito que quem me lê me conhece... e sabe que respeito profundamente a vida, bem como a morte. Ainda assim, quero ressalvar que não há nenhuma relação entre esse texto e os fatos recentemente passados no Japão. Boa parte das imagens aí descritas me surgiram em sonho... o restante elaborei. Como já disse Lygia F. Telles, "Sortilégio? (...) a criação (...) é um mistério" (depoimento à escritora Edla van Steen, in Venha ver o pôr-do-sol e outros contos)
ResponderExcluir