segunda-feira, 11 de abril de 2011

Íctio

Ela pedalava por ruas tranqüilas. As copas das árvores filtravam os raios de sol do fim da tarde, criando desenhos sinuosos no asfalto. Ao passar pela mercearia, lembrou-se do convite da amiga mais velha – que era ela própria, mas ela ainda não sabia: “Vá à mercearia quando puder, e prove aquele peixe”. Decidiu parar.

Sua amiga mais velha estava lá. E as duas pediram o peixe. Ao ser servido, tudo o que ela viu foi um peixe gordinho e empanado sobre a travessa de alumínio. “Prove-o!” – disse a idosa, com um olhar cúmplice. “Esse peixe é mágico.”

A mais nova obedeceu. À primeira dentada, susto: vivo! O peixe estava vivo! E se debatendo ainda entre as algas verdes.

Num instante, água, água ao redor. Ela sentiu o sal marinho entrando pelos seus poros, por sua boca, seu nariz, encharcando seus cabelos. Ela se assustou e quis gritar. Foi quando seu olhos se abriram. E ela entendeu que a senhora a sua frente, que lhe sorria, calma, não era se não ela própria, no futuro.

Aquietou-se e deixou-se inundar. Virou peixe. E ganhou o mar.


"Ver e ouvir e sentir são milagres, como é milagre cada parte e migalha de mim"
Walt Whitman, Canção de mim mesmo, in Folhas de Relva

Um comentário:

  1. Acredito que quem me lê me conhece... e sabe que respeito profundamente a vida, bem como a morte. Ainda assim, quero ressalvar que não há nenhuma relação entre esse texto e os fatos recentemente passados no Japão. Boa parte das imagens aí descritas me surgiram em sonho... o restante elaborei. Como já disse Lygia F. Telles, "Sortilégio? (...) a criação (...) é um mistério" (depoimento à escritora Edla van Steen, in Venha ver o pôr-do-sol e outros contos)

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