quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Adorno


Porque o dia amanheceu suave, e ela quis para si uma beleza cálida, escolheu brincos de pérola com detalhes prateados. Nem as pérolas eram verdadeiras, nem os detalhes prateados eram realmente de prata. Mas ficou tão bonita como se estivesse usando pérolas e prata, ou pérolas e – ainda mais fino – ouro branco.


Qual o real valor do adorno? Aquele que ele tem, ou o que a ele se atribui?

Porque hoje me lembrei de Cópia Fiel.


Para compartilhar...

um suspiro. Se estivesse escrito a palavra exata do dia às 7h da manhã, ela seria "energia". Mas agora, às 22h30, o reflexo no espelho, um relance, uma imagem, a lembrança de um filme... e eis "adorno". É realmente muito interessante o processo da escrita, como as palavras brotam de fontes diversas.

Pois bem... "energia" fica para outro dia. Talvez amanhã, quem sabe?

Sorrisos.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Trama


Ana tentou, uma vez mais, desfazer os nós do novelo. Por descuido, a lã se tornou um emaranhado só, e muitos eram os nós, alguns grandes, outros tantos pequenos. Nos trechos em que os nós foram desfeitos, era possível vislumbrar algumas máculas – ainda que não tirassem a beleza da lã, eram as marcas de uma história, tal como as marcas que o tempo provoca em nossos corpos.

Era o caso de se perguntar: prosseguir a trama com a mesma lã? Ou seria preciso escolher outro novelo, fazer outra trama, contar outra história?

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Acolhimento

Flávio, querido, muito obrigada.
Marcelo... meu caro, muito, muito, muito obrigada.


De repente, você se dá conta que, mais do que ser ouvida, você foi acolhida. Janelas foram abertas, e a luz do sol clareou sua casa. Suas palavras ecoaram e encontraram abrigo. Contentamento sem fim, porque palavras sem morada são apenas palavras ao vento, folhas de outono varridas sem poesia e carinho.


"(...) O processo do tempo é uma trama de efeitos e causas, de sorte que pedir qualquer mercê, por ínfima que seja, é pedir que se rompa um elo dessa trama de ferro, é pedir que já se tenha rompido. Ninguém merece tal milagre. (...) Desconhecemos os desígnios do universo, mas sabemos que raciocinar com lucidez e agir com justiça é ajudar esses desígnios, que não nos serão revelados."
 Jorge Luis Borges. Uma oração in Elogio da Sombra (2001).

domingo, 28 de agosto de 2011

Nostalgia

A melancolia chegou com o vento. Bateu à porta, de leve, provocando saudades de tempos idos. Saudades e suspiros. Suspiros pelos tempos idos, e desconhecidos. Por ser desconhecido, era perfeito – não é sem razão que apenas o pretérito pode ser perfeito, mais-que-perfeito.

sábado, 27 de agosto de 2011

Ervilhas

Para a Lê, querida, sempre.

Dias desses...
- Tia, estou com fome.
- Nós já vamos jantar, querida. Me ajuda a arrumar a mesa.
Enquanto levava os pratos e os talheres para a mesa:
- E o que tem para comer?
Ao que eu a informo do cardápio da noite.
- Ah, tia, mas eu só vou comer o frango e o arroz. Eu não gosto de mandioca, de cenoura, de ervilhas. E também não quero tomate.
- Letícia, essas ervilhas são diferentes. Você vai gostar.
- Por que, tia, são ervilhas africanas?
- Africanas?!! São, Letícia, são ervilhas africanas.
- Ah, então eu quero.

Diante do meu olhar de curiosidade e admiração, a Letícia comeu as ervilhas, que não eram (!) africanas. Comeu as cenouras, a mandioca, o tomate. E comeu o arroz e o frango também, dizendo que estava tudo muito bom.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Anômico

Desejo saber por que tanta saudade

Se o gosto na boca é amargo.

Se a lembrança, cada dia mais distante.

Anseio saber os caminhos

Almejo entender os motivos

Afinal, gosta-se, de verdade, do quê?

Do fato?

Ou da idéia?

Porque há situações, e há estados, e há coisas, e há pessoas que simplesmente não conseguimos, habilmente, nomear.


quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Baunilha

Duas versões possíveis

Depois do doce, o beijo teve gosto de baunilha.
Depois do beijo, o olhar confidenciou um desejo.
O desejo, intenso, explicitou o que a palavra queria negar.


Soluçava as dores de amor comendo pudim de leite aromatizado com baunilha.
O hálito ficou doce. Lambeu os dedos e enxugou as lágrimas.
De repente, a vida agridoce.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Restauração

Dispôs-se a arrumar a casa depois de toda aquela bagunça.


Tal qual um ourives, queria restaurar com cuidado e afeto a aliança e a palavra. O silêncio e o abraço. O carinho e o olhar. Encontrou o sentimento, guardado com as meias e os pijamas dentro da gaveta.


"...quero tentar uma oração que seja pessoal, não herdada."
Jorge Luís Borges, Uma oração in Elogio da Sombra.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Movimento

E então um vento suave e morno alcançou seu rosto, lembrando-lhe que tudo está em movimento. Seja em seu entorno, ou dele distante... sensível ou não à percepção visual... perceptível ou não por nossos sentidos tátil e auditivo... tudo está em movimento, todo o tempo. Mesmo quando se julga estar paralisado, mesmo quando a situação é considerada difícil e sem boas perspectivas.

É fato. A vida é inesperada.


Praia do Viana, Ilhabela, SP.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Recolhimento


Não é a história da lagarta que virou casulo para virar borboleta. Também não se trata da passagem do outuno, fazendo as folhas da árvore caírem douradas sobre o chão.

Ainda assim, os últimos movimentos remetem à idéia de recolhimento. Falam sobre acalmar-se, aquietar-se, silenciar. Movimentos introspectivos, circulares. Força centrípeta.

Porque só quando se chega ao âmago, é possível, de novo, caminhar.

Praia Santa Tereza, Ilhabela, SP.


quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Trem

Para os mineiros – e aqui ressalto minhas raízes maternas, e minhas outras tantas ligações com as Gerais – trem é um vocábulo que dá conta, e bem, de uma série de outros objetos, outros nomes, outras coisas. Aliás, para os mineiros, o trem é a própria coisa. Quem não se lembra do velho e surrado "pega os trem que lá vem a coisa?"

Ando pensando em trem esses dias... mas não tanto pelos mineiros, não. Só porque um trem atravessou o meu caminho. Ou, ainda, porque o trem da minha vida quase descarrilou (eufemismo? pseudo-pensamento positivo?)

Escrever, mais do que nunca, tornou-se um exercício vital para manter o foco – ou, melhor ainda, desfocar...

A vida anda difícil pras bandas de cá...

Logatoma

Para quarta, 10 de agosto. (Tom querido, muito obrigada!)

Quando se esvai todo o seu tempo, e, além das demandas diárias, existem demandas inesperadas que são demasiado incômodas, e você não quer sequer pensar em uma palavra exata.

Existem dias assim.

"Retomou a caminhada (...). 'Viver cada dia como se fosse o último' - esse era o conselho convencional, mas na verdade quem tinha energia para isso? E se chovesse ou você estivesse de mau humor? Simplesmente não era prático. Era bem melhor tentar ser corajosa, audaciosa e se esforçar para fazer a diferença. Não exatamente mudar o mundo, mas um pouquinho ao redor."
Um Dia, David Nicholls


terça-feira, 9 de agosto de 2011

Outro


Para fugir do óbvio, escolheu outro assunto. Não falou do tempo, do trânsito, das novidades, fossem elas grandes ou pequenas. Resolveu desinteressar-se de si próprio, e quis saber do outro.

E, de repente, percebeu outra paisagem ao seu redor.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Sentimental

Encontrou um bilhete sobre o micro. Inesperado. Começou a chorar.

Terminou o livro. Há muito tempo não lia pouco mais de 400 páginas tão depressa. Final inesperado. Releu o final, custando a acreditar. Releu o bilhete. E desatou de novo a chorar.

Às vezes não precisa muito para a gente ficar assim, sentimental.

"Spend all your time waiting
for that second chance
for a break that would make it okay
there's always some reason
to feel not good enough
and it's hard at the end of the day..."


Sarah Mclachlan, Angel, trilha sonora do encantador Cidade dos Anjos.

*Eu li, amei e chorei: Um Dia, David Nicholls.

Respeito

A palavra para domingo, 7 de agosto.

Viu-a escolher aquele que era, para ela, o doce menos apetitoso da vitrine. Doces, em sua visão, deveriam ser delicados, não exatamente bonitos, mas agradáveis aos olhos e ao paladar. A escolha acertada de um pequeno número de ingredientes que, em conjunto, provocassem na boca, a um só tempo, deleite e saudade. Saudade e prazer. Ela escolheu uma fatia grande, de um bolo com praticamente só um ingrediente: chocolate. Chocolate pode ser bom... mas só chocolate? Em algum momento ela sentiria falta da cereja, do chantilly, de uma nuvem de açúcar finíssimo.


Mas ela nada podia fazer. Aquiesceu em silêncio, colocou um sorriso nos lábios, e desejou, sincera e profundamente: que você seja feliz, querida.

Equilíbrio

A palavra exata para sábado, 6 de agosto.

Pé ante pé, tentou se equilibrar no meio fio. Água da chuva que tinha parado há pouco ainda correndo ao seu lado, o dia virando noite no horizonte, um ar quente subindo do asfalto. Esticou os braços, mantendo-os paralelos ao chão, e pensou no trapézio de um circo. Não, nunca seria trapezista. Nem bailarina. Queria viver muitas vidas, mas também não seria atriz.

Queria o trabalho e o descanso. Queria o prazer e a dor. Queria a noite e o dia, iguais entre si, equânimes. Queria o doce e o salgado. Havia mudado, aliás, porque hoje em dia queria menos doce que antes. Queria também o amargo. Queria provar todos os sabores. Queria o silêncio da noite. Queria o choro de uma criança, queria o colo da mãe (queria?). Queria a melodia e o silêncio, queria outros (todos?) os ares, outras (todas?) as terras. Queria outro país, queria outro mundo. Precisava, de repente, provar tudo. Para então encontrar o equilíbrio dentro de si.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Múltipla

Até que ponto justificar seus atos como a realização de seus desejos supõe a prática da liberdade? Se eu quiser realizar todos os meus desejos – todos, absolutamente todos – não seria escrava deles próprios? Mesmo porque nossos desejos não são complementares. São excludentes, muitas vezes.

A vida impõe escolhas. E elas podem ser plurais. Mas não, não são múltiplas.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Complexo

Taxou-a de complicada.

Complicada, não. Complexa.

Complicado é quem não se permite viver o que sente. Quem justifica suas (não) ações dizendo seguir as regras, quando na verdade não age por temor.
Quem pensa que sente tudo preto no branco, quem não entende as nuances da vida, quem acha que pode ter o controle de si próprio o tempo todo.

Ser humano envolve ser complexo. Envolve lidar com paradoxos, com situações inusitadas, com o inesperado diante de si, dentro de si, batendo à porta, pedindo para entrar – ou será pedindo para sair? De si mesmo, do seu mundo, de tudo o que você já conhece?

Só complicamos nossa vida porque não admitimos nossa complexidade.

"Eu não sou eu nem sou outro
Sou qualquer coisa de intermédio
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro"


Mário de Sá-Carneiro.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Reticências

Para representar o que não foi dito... para contar o que pulsou além do discurso...

Para suspirar... depois do susto, do sonho, do gozo...

Para calar uma verdade, ou uma mentira...

Para contar a vontade...

Para gritar o desejo com um silêncio eloqüente...

Porque o ponto final pode ser o fim da história.

E as reticências podem deixá-la continuar... depois...

Cuidado

A palavra exata para terça, 02 de agosto.

Cena 1

Ela o chamou apenas de leve, para ele se ajeitar e não cair do sofá. Pegou o cobertor e o estendeu, para que ele não sentisse frio. Sabia que ele acordaria se desligasse a TV, então só abaixou o volume e o deixou descansar. Para não incomodar, apagou parte das luzes e colocou os fones para continuar ouvindo as músicas no micro.

Cena 2

Tivera um dia difícil. Mas, mesmo à distância, ele a ajudou a encontrar o endereço; mesmo à distância, ele a ajudou esclarecendo dúvidas grandes e pequenas. E quando, cansada, tudo o que ela quis foi falar e chorar um pouco - porque chorar faz bem - ele a ouviu. E quando ela não quis mais falar, ele não perguntou mais nada.

"What's in your hands
It's more than you
And it's more than I"

More than us, Travis.

Para compartilhar

Feliz pela última palavra exata, cansada demais para escrever a palavra de terça.
Deixo por aqui, neste instante, estas palavras que muito me encantam:
"O amor era uma graça, o jiló da vida, espelho embaciado de duas faces. De um lado ele, do outro ela, cada qual pelejando, mastigando mais um pouco nova porção, ratificando o gosto, limpando o vidro pra clarear a imagem reincidente, que os dois se amando formavam."
Adélia Prado, Pungitivo (orig. 1978), na antologia de contos Mulheres & Mulheres.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Saudades

Porque hoje o dia amanheceu branco e eu me lembrei da senhora no portão esperando eu descer o longo corredor e abanar a mão uma vez mais...
Porque passei em casa no meio da tarde só para ficar vinte minutos e tomar um café, mas não, não era mais a casa da minha infância, e não, a senhora não está mais lá, nem aqui.
Porque a senhora teria reclamado: "para que carregar tanto peso, menina?"
Porque se havia alguém com quem eu queria falar todos os dias, mesmo que fosse só para dizer um "alô", esse alguém foi a senhora...
Porque se havia alguém no mundo que eu ouvia, pode ter certeza, era a senhora.
Porque eu gostava de ficar abraçada com a senhora quando era criança, muito criança, assistindo filmes de bang-bang na TV, nós duas na sua cama...

Porque hoje eu vi uma mãe cuidando de sua filha com tanto amor, e me lembrei da senhora.

Porque eu passei hoje em frente ao hospital onde a senhora ficou no último ano, lutando para viver.

Porque hoje agosto nasceu e a senhora faria 76 anos neste mês.

Porque eu não consigo chamá-la de você... por mais que queira, vou achar falta de respeito. E eu a amo demais para desrespeitá-la...

Avó amada, avó querida, quantas saudades da senhora... quantas saudades de você.